"Achamos
apropriado postar aqui uma descoberta anunciada neste ano que não só
muda o entendimento de como a epidemia da doença teve início nas
Américas, como finalmente exonera o homem considerado até agora como
“Paciente Zero” e, portanto, o responsável por trazer e espalhar o HIV
pelo continente"
O nome do “Paciente Zero” era Gaëtan Dugas, um comissário de voo
franco-canadense, e sua saga teve início em 1981, quando os centros de
controle e prevenção de doenças nos EUA começaram a emitir relatórios
sobre um novo e assustador vírus que estava infectando homens que haviam
mantido relações sexuais com outros homens.
(Gaëtan Dugas). O vírus, como você sabe, acabou ficando conhecido como vírus da
imunodeficiência humana — ou HIV. Hoje sabemos que ele evoluiu a partir
de um patógeno que infectava primatas na África Subsaariana,
possivelmente na região de Kinshasa, na República Democrática do Congo, e
que o salto de animais para humanos provavelmente aconteceu em algum
momento no início dos anos 1900.
Equívoco mundano
Quando o vírus foi identificado, em 1981 — e associado com a
atividade sexual —, pesquisadores norte-americanos começaram a avaliar
um grupo de homens homossexuais portadores de HIV, iniciando seus
estudos com pacientes originários da Califórnia. Na época, os cientistas
conseguiram conectar mais de 40 homens em 10 cidades diferentes dos EUA
relacionados a essa “rede” de transmissão e, no meio disso tudo, eles
identificaram Gaëtan Dugas.
Entretanto, Dugas, conforme mencionamos anteriormente, era de origem
franco-canadense e não residia na Califórnia. Então, o que os
pesquisadores da época fizeram foi identificar o comissário de bordo com
a letra “O”, que indicava a abreviação de “Outside
California” — ou “de fora da Califórnia”, em tradução livre. Porém,
nunca, jamais, os especialistas que iniciaram os estudos com o HIV
consideraram Dugas como sendo o Paciente Zero.
O problema foi que em algum momento na literatura médica a letra “O”
acabou sendo confundida com o número “0” — e, eventualmente, a mídia
teve acesso a essa nomenclatura errônea, tornou a informação pública e
transformou Dugas no homem responsável por iniciar a epidemia de HIV no
continente americano.
(Randy Shilts) O equívoco foi consolidado depois da publicação do livro “And the
Band Played On”, do aclamado jornalista e escritor Randy Shilts — que
faleceu em consequência da AIDS em 1994. O volume trata da crise do HIV
nos EUA e, nele, Shilts não só fala extensivamente a respeito de Dugas e
o responsabiliza pela epidemia, como se refere a ele como sendo um
sociopata com múltiplos parceiros sexuais.
Nos anos seguintes, incontáveis artigos e manchetes se referiram ao
comissário como sendo o “Colombo da AIDS” e o “homem que nos transmitiu a
doença”. Com isso, Dugas foi injustamente demonizado, e tanto ele como
sua família foram fortemente condenados pela opinião pública.
Ciência fazendo justiça
Na verdade, nenhum dos estudos realizados com o grupo de homens lá no
comecinho da década de 80 sugeriu que Gaëtan Dugas fosse o precursor da
epidemia de HIV no continente. Assim, com o objetivo de entender melhor
a origem da doença nas Américas e esclarecer de uma vez por todas a
confusão, um grupo de cientistas teve acesso a cerca de 2 mil amostras
de sangue coletadas nos anos 70 em Nova York e São Francisco e voltou ao
trabalho.
(Um dos slides mostrando o mapeamento genético das amostras de sangue feito pelos cientistas). Eles realizaram o mapeamento genético dos vírus encontrados nas
amostras e descobriram que Dugas simplesmente foi uma entre milhares de
pessoas que foram infectadas na década de 70. E mais: após analisar o
genoma da linhagem do vírus que o comissário carregava em seu sangue — o
HIV-1 —, os cientistas concluíram que se tratava de uma cepa típica nos
EUA na época, o que indicava que o “Paciente 0” não havia sido a
primeira pessoa a contrair a doença.
O mapeamento genético permitiu que os cientistas reconstruíssem a
"árvore genealógica" do HIV e descobrissem quando o vírus chegou aos
EUA. Por conta da diversidade genética que o time encontrou, eles
concluíram que a doença não poderia ter se originado no final dos anos
70, mas sim entre os anos de 1970 ou 1971.
(Dugas foi apenas mais uma entre as milhares de pessoas infectadas pelo HIV, e não o responsável por todas as transmissões). Ademais, comparando as análises que eles encontraram com as de Dugas,
os pesquisadores explicaram que o resultado foi semelhante a um teste
de paternidade negativo. Aliás, o estudo apontou que a cidade de Nova
York — mais do que São Francisco — foi um ponto crucial para a
transmissão da doença para todo o país e, eventualmente, para o resto do
mundo.
Em suma, o novo estudo não só traçou a origem da epidemia do HIV nas
Américas, como permitiu que a trágica confusão envolvendo Gaëtan Dugas
fosse finalmente esclarecida. O comissário de bordo faleceu em 1984, e
seus pais, que sofreram duramente por anos com as acusações feitas ao
filho, também já morreram. Mas os familiares vivos do — injustamente
rotulado — Paciente Zero agradecem o empenho da Ciência. Fonte: Stat / Helen Branswell / CNN / Jacqueline Howard / Scientific American / Dina Fine Maron / BBC / James Gallagher / Mega Curioso
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