"Nunca houve tantos motivos para sentir medo. E isso está nos
afetando"
Segundo dados do Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA,
20,8% das pessoas têm transtorno de ansiedade, ou seja, passam o tempo
inteiro com medo de alguma coisa (pois a ansiedade nada mais é do que
medo antecipado, de algo que pode ou não ocorrer). É dez vezes mais do
que na década de 1980. Mesmo que você não seja uma delas, certamente já
se sentiu incomodado por algum tipo de medo. Ele se tornou o maior
problema psicológico do nosso tempo – e virou parte do dia a dia de todo
mundo.
Ter medo não é ruim. Nós só estamos aqui, afinal, porque nossos
antepassados eram medrosos e viviam fugindo do perigo. O cérebro humano
evoluiu para ser extremamente sensível a ele. Mas isso aconteceu há
milhares de anos, quando a vida era muito diferente. Hoje, a quantidade
de situações e estímulos que podem nos causar receio é incalculavelmente
maior. Daí a explosão de medo na cabeça das pessoas. Não precisa ser
desse jeito. Mas, primeiro: por que isso aconteceu?
O cérebro humano quase triplicou ao longo da evolução. Passou de 600 cm3 no Homo habilis (há 2 milhões de anos) aos 1.400 cm3 do Homo sapiens,
150 mil anos atrás. Nossa massa cinzenta foi crescendo e ganhando
camadas, cada uma mais complexa que a anterior, até chegar ao neocórtex –
sua parte mais externa, enrolada como uma linguiça, responsável por
funções mentais como pensamento e linguagem. Tudo o que você tem de
racional está ali. Só que mais para dentro, no miolo do cérebro, existe
outra coisa: o chamado sistema límbico. É uma parte mais primitiva, que
coordena reações instintivas. Seu pedaço mais importante é a amígdala,
que detona as sensações de medo. “Você está caminhando por um bosque, vê
uma cobra, se assusta e imediatamente pula para trás, sem sequer pensar
a respeito. A amígdala é a responsável por essa resposta”, explica Raül
Andero, neurocientista da Emory University, nos EUA. Como as cobras
eram um perigo constante para nossos ancestrais, a evolução moldou o
cérebro para ter medo delas. Prova disso é que macacos criados em
laboratório, que nunca viram uma cobra, se assustam se forem colocados
diante de uma (em compensação, se eles tiverem a amígdala retirada,
deixam de sentir todos os tipos de medo). Os medos são disparados pela
parte primitiva do cérebro.
Quando você anda pela rua pensando nas férias, o seu cérebro avançado
está decidindo para onde quer viajar. Mas o cérebro instintivo, sem que
você perceba, também está a todo o vapor, de olho nas ameaças imediatas
(um buraco no chão, por exemplo). Os dois são interligados, se
comunicam, influenciam um ao outro. Por isso, os psicólogos preferem
dividir a mente em dois sistemas: o Sistema 1 e o Sistema 2. Cada um é
um conjunto de processos mentais envolvendo várias regiões do cérebro.
O Sistema 1 é intuitivo, rápido, emotivo, inconsciente, automático.
Sabe aquele pressentimento que você tem quando conhece alguém? É o
Sistema 1 em ação. Ou quando volta para casa de forma automática, sem
precisar relembrar o caminho? Sistema 1. Tudo o que você faz sem pensar –
inclusive sentir medo – é obra do Sistema 1. Já o Sistema 2 é o
contrário: ele é o pensamento, lento, consciente, racional. A sua
consciência mora dentro dele. “Mas o Sistema 1 é o autor secreto de
muitas escolhas e julgamentos que você faz”, explica o psicólogo
israelense Daniel Kahneman, ganhador do Prêmio Nobel de Economia e autor
de Rápido e Devagar, livro que discute a relação entre os dois sistemas.
O Sistema 1 é essencial para a sobrevivência. É o instinto que nos
permite reagir rapidamente a ameaças – seja uma cobra ou um ônibus que
avança sobre a faixa de pedestres bem na hora que você está
atravessando. O problema é que o Sistema 1 usa regras rudimentares,
muitas vezes erradas, para dosar o medo que vamos sentir das coisas. Por
exemplo. Quanto mais você se lembra (ou é lembrado) de uma ameaça, mais
medo o Sistema 1 produzirá, independente do real perigo envolvido. E
ele também é fortemente influenciado pelo medo que outras pessoas sentem
(medo é contagioso). Tudo isso nos leva a receios exagerados e errados.
Após os atentados de 11 de Setembro, por exemplo, os americanos
ficaram com medo de andar de avião. Muito mais gente decidiu viajar de
carro. E, por isso, morreram 1.600 pessoas a mais em acidentes de
trânsito nos EUA ao longo de um ano. Avião era, e é, estatisticamente
muito mais seguro do que carro. Só que as pessoas se lembraram dos
atentados, que tinham sido exaustivamente mostrados pela imprensa, e
tomaram a decisão errada. Se tivessem superado o medo, e andado de
avião, praticamente todas estariam vivas. “Temos pavor de morrer de
repente, junto com outras pessoas”, diz o psicólogo Gerd Gigerenzer, do
Instituto Max Planck, na Alemanha, que analisou números fornecidos pelo
Ministério dos Transportes dos EUA. “Aí tomamos a decisão errada, e
pulamos da frigideira para o fogo.”
Há inúmeros exemplos assim, de medo irracional. Como a mãe que tem
medo que seu filho fume maconha, mas não vê problema se ele encher a
cara – sendo que o álcool é comprovadamente mais prejudicial à saúde. A
pessoa que tem medo de usina nuclear, mas adora ir à praia se expor à
radiação solar, algo muito mais arriscado (só o Brasil registra 120 mil
casos de câncer de pele por ano). E você tem mais medo de diabetes,
aids, ou acidentes de trânsito? No Brasil, a aids (71%) e os acidentes
(58%) lideram com folga. E a diabetes nem é citada em pesquisas sobre
temores. Mas, pensando racionalmente, é dela que você deveria ter mais
medo: em 2010, essa doença matou 54 mil brasileiros, o mesmo que os
acidentes de trânsito (42 mil) e a aids (12 mil) somados. Ocorre que os
acidentes aparecem todo dia na TV e nos jornais. E o que você acha que
terá mais destaque na imprensa, uma celebridade morrer de diabetes ou de
aids?
A mídia escolhe as coisas para chamar sua atenção. (Por exemplo: esta
foto que publicamos aí do lado.) E as coisas que mais chamam a atenção
do cérebro são, justamente, as que mais assustam.
É por isso que existem tantos programas policiais e notícias sobre
violência. “Vivemos num mundo onde somos convocados a sentir medo. Na
mídia, é como se estivéssemos em perigo constante, podendo ser
assaltados em cada esquina”, diz Luís Fernando Saraiva, do Conselho
Regional de Psicologia (CRP) de São Paulo. O marketing também é muito
baseado no medo. Bancos e empresas de seguro usam esse argumento
abertamente, mas, se você observar bem, verá que outros anunciantes
também manipulam nossos temores para vender. Só que usam mensagens mais
sutis.
“A moda joga com o medo de não pertencer ao grupo”, diz o
publicitário dinamarquês Martin Lindstrom, autor de cinco livros sobre
as táticas de manipulação usadas pelas empresas. “Aposto que você teria
vergonha de sair com a roupa do seu pai, pois se sentiria desconectado
da sua tribo”, afirma. “O desodorante traz outro medo, de que você não
vai conseguir namorada com seu cheiro. A mesma lógica vale para xampus,
branqueadores de dente e academias de ginástica. Afinal, malhamos para
estar saudáveis, ou por medo de ficar flácidos?”, questiona Lindstrom.
Se você não comprar o carro X, seu filho vai ficar com vergonha quando
você for buscá-lo na escola. E por aí vai. Boa parte da propaganda
explora o medo da rejeição social.
E esse medo nunca foi tão forte. Nunca estivemos tão ligados uns aos
outros, mas, ao mesmo tempo, nunca sentimos tanto medo de não sermos
aceitos. Você já deve ter percebido isso quando postou alguma coisa nas
redes sociais – e imediatamente ficou ansioso sobre quantos likes aquilo
iria ter ou deixar de ter. Um estudo feito pela agência de publicidade
JWT com 1.270 americanos e ingleses constatou que 40% dos usuários do
Facebook têm medo de não serem incluídos nas conversas online dos
amigos. O mundo exige cada vez mais de nós. Não conseguimos nos
desconectar, e aí sentimos mais ansiedade.
Políticos espalham temores para arrebanhar votos, jornalistas faturam
em cima de catástrofes, biólogos citam vírus letais quando querem obter
fundos para desenvolver vacinas… Todo mundo propaga o medo. Mas não faz
isso só por maldade ou interesse próprio. “Se eu disser que há uma
doença mortal se espalhando na sala onde você está, você sairá dela
mesmo sem saber se é verdade. E vai avisar as outras pessoas”, diz
Lindstrom. “Milhares de anos atrás, também espalhávamos a notícia de uma
planta venenosa, porque isso aumentava a chance de sobrevivência do
grupo.” Ou seja: conforme cada pessoa absorve mais medo, ela também se
torna propagadora, espalha esse medo para os outros. É uma reação
instintiva.
Ok, sentimos cada vez mais medo porque nosso pobre cérebro é
imperfeito – e o mundo moderno explora seus defeitos como nunca. E
agora?
Você certamente já se arrepiou vendo filmes de terror. E gritou dando
piruetas na montanha-russa. Estranho: você estava aterrorizado, mas
adorou cada segundo. Isso acontece porque em situações normais, como no
cinema ou no parque, a parte avançada do cérebro permanece no comando.
Você se diverte porque mantém o controle. O seu instinto de medo é
ativado, mas a consciência sabe que não se trata de um perigo real.
Então acontece uma descarga de adrenalina acompanhada de dopamina –
neurotransmissor associado ao prazer. E você sente aquele gostoso
friozinho na barriga.
Mas, em situações de perigo real, como um assalto, isso não acontece.
A amígdala passa por cima de todo o resto e impõe um temor
incontrolável. Quando alguém desenvolve medo crônico, fobias ou
transtorno de estresse pós-traumático, situações cada vez mais comuns no
mundo moderno, a amígdala fica disparando o tempo inteiro. “Por isso, a
pessoa apresenta grande ansiedade no dia a dia”, explica o
neurocientista Raül Andero, da Universidade Emory. Já estão sendo
criados medicamentos que podem aliviar ou suprimir o medo (mais sobre
isso daqui a pouco), mas, na maioria dos casos, a principal solução é
terapia. Não só a terapia feita em consultório. Há coisas que você mesmo
pode fazer.
A principal delas se chama terapia cognitivo-comportamental (TCC).
Ela nos ensina a mudar os pensamentos ruins que ficam estimulando a
amígdala e gerando ansiedade. “A forma como pensamos influencia a
maneira como sentimos. Portanto, mudar o modo como pensamos pode mudar
como nos sentimos”, resume o psiquiatra Aaron T. Beck, pai da TCC, no
livro The Anxiety and Worry Workbook (“O Manual da Ansiedade e
da Preocupação”, inédito no Brasil). Se antes da entrevista de emprego
você pensa “Não tenho ideia do que dizer; eles acharão que sou um
idiota”, vai se sentir tenso e ansioso. Mas se em vez disso você pensar
“Estou bem preparado para a entrevista e vou causar uma boa impressão”,
ficará mais calmo e confiante. Pode parecer banal, mas funciona. Tem
efeitos neurologicamente comprovados.
A exposição gradual da pessoa ao objeto ameaçador também ajuda a
superá-lo. A neurologista Katherina Hauner, da Universidade
Northwestern, utilizou essa técnica – que se chama dessensibilização –
para tratar fobia de aranhas. Ela monitorou o cérebro de pessoas que
tinham muito medo e não conseguiam nem olhar para os aracnídeos. Esses
voluntários foram sendo expostos às aranhas, aos pouquinhos, sem
ultrapassar o limite de cada um. Ao fim do processo, a maioria conseguiu
se aproximar e até tocar nas aranhas. Seus cérebros tinham mudado
fisicamente. A terapia mudou a rede de neurônios ligados ao medo, e
reorganizou a resposta do cérebro ao objeto ou à situação temida.
Em seu novo estudo, publicado no final de 2013, ela foi além:
mostrou, pela primeira vez, que é possível apagar medos enquanto uma
pessoa dorme. Numa experiência meio cruel, que lembra aquelas feitas em
ratos, a cientista condicionou um grupo de voluntários humanos a ter
medo de certo rosto. Quando eles viam esse rosto, eram expostos a um
cheiro específico e levavam um choque elétrico. Em pouco tempo,
aconteceu o óbvio: as pessoas associaram o choque aos dois sinais (o
rosto e o cheiro), e passaram a ter medo deles. Aí, Hauner resolveu
tentar algo revolucionário: apagar o medo. Deixou que os participantes
dormissem, e os expôs àquele mesmo cheiro, para que eles evocassem a
memória ruim. A diferença é que, agora, não aplicou choques. Deu certo.
As pessoas deixaram de ter medo do cheiro – apenas o medo do rosto
persistiu.
A técnica de apagar medos durante o sono é experimental, ainda não
existe fora dos laboratórios de pesquisa. Mas é possível conseguir o
mesmo efeito com um procedimento bem conhecido: a hipnose. “Vivemos tão
condicionados no dia a dia que usamos nossa mente de forma muito
limitada. Em geral, não comemos quando temos fome, e sim quando está na
hora de comer”, diz o psiquiatra italiano Leonard Verea, especialista em
hipnose. “A hipnose auxilia a pessoa a estimular a própria mente, para
sair da acomodação e ultrapassar obstáculos.”
Segundo Verea, o medo é a dificuldade de lidar com uma coisa
desconhecida. Isso pode gerar tensão suficiente para ultrapassar os
limites da pessoa e fazer com que ela entre numa espécie de
curto-circuito mental. Quem tem ataques de pânico, por exemplo, perde a
capacidade de imaginar situações. “E quanto menos ela consegue imaginar,
maior a sua ansiedade e menores os seus limites de tolerância frente à
situação”, diz ele. “A hipnose ajuda o indivíduo a imaginar que pode
sair disso e viver com tranquilidade. Ele sai do pânico aproveitando
seus próprios recursos, conscientes e inconscientes.”
A psicanálise e diversas outras terapias também têm se mostrado
eficientes para lidar com o medo e a ansiedade. O sucesso não depende da
linha terapêutica em si, até porque tudo depende da relação entre o
terapeuta e o paciente. Mas existe uma condição básica para que uma
terapia dê certo. O bom atendimento é aquele que não se limita a
combater os sintomas. É o que procura entender a causa do problema no
cotidiano de cada pessoa. Faz
sentido: você pode tomar calmantes para dormir. Mas se não entender o
que está tirando seu sono, pouco adianta.
O fim dos medos
A maioria de nós passa por algum trauma na vida – assalto, sequestro,
acidente, desastre natural, abuso ou a perda repentina de alguém
querido. E cerca de 10% dos que vivem um trauma (até 14% no caso das
mulheres) vão desenvolver o chamado transtorno de estresse
pós-traumático (TEPT). Eles revivem a cena em pesadelos e flashbacks
aterradores. Sentem tanto medo que chegam a se isolar do convívio
social. Muitos conseguem se curar total ou parcialmente com terapia. Mas
algumas pessoas nunca se recuperam. Nesses casos, a grande promessa são
os estudos voltados à prevenção do medo. Eles buscam evitar que a
emoção negativa seja gravada no cérebro. Fazendo pesquisas em ratos,
cientistas descobriram que injeções de substâncias como cortisol reduzem
a chance de sofrer os transtornos. Cortisol é o hormônio do estresse.
Quanto mais estresse você tem, mais a memória é fixada. No entanto, por
um motivo que ainda não é bem compreendido, tomar uma grande dose de
cortisol reduz a fixação do trauma.
Daqui a cinco ou dez anos, tomaremos um comprimido após experiências
ruins. E isso reduzirá drasticamente a possibilidade de desenvolver um
trauma. O remédio terá preço acessível, como a pílula do
dia seguinte (usada para bloquear o desenvolvimento de gravidez), e você
poderá comprá-lo na farmácia após uma situação ruim, como um assalto.
Os sintomas do trauma não se fixarão na memória e você terá mais chances
de seguir sua vida normal. Como o medo é um fenômeno complexo, não dá
para preveni-lo atuando num só receptor do cérebro. Por isso, haverá
dois ou três fármacos na mesma pílula.
A ideia da pílula do medo não é eliminar a memória do acontecimento, e sim as emoções negativas associadas a ele. Você se lembraria do assalto, mas sem trauma. Como todo medicamento, claro, o perigo é o uso indiscriminado. Imagine um mundo onde ninguém tivesse medo de nada, nunca. Ele poderia evoluir de modo imprevisível, com explosões de violência e ondas de solidão. “Faz parte da vida sentir medo e ficar ansioso. O que temos que avaliar é o limite, ou seja, quando essas sensações se tornam insuportáveis. Aí sim merecem intervenção”, diz Saraiva. Para ele, a sociedade nunca teve tão pouca tolerância a emoções negativas. Terminou o namoro? Tem que estar bem no dia seguinte. A mãe morreu? Precisa levantar o astral. “Frente a qualquer sensação ruim, as pessoas já procuram tratamento, como se não pudessem sentir o que sentem”, diz. Nunca sentimos tanto medo – e, pior, nunca tivemos tanto medo dessa sensação. Talvez a chave do problema, e sua grande solução, morem justamente aí. Perder o medo do medo. Fonte: super.abril.com.br
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