As
razões por trás destes fenômenos podem ser muitas. A posição central
nas rotas internacionais de turistas e viajantes de negócios, por
exemplo, provavelmente colaborou para que o Sars-CoV-2 chegasse
rapidamente à Europa e partes dos EUA e logo se espalhasse por lá, ao
mesmo tempo que a precocidade e o rigor na adoção de medidas de
contenção possivelmente ajudou a atrasar sua propagação em outras
regiões, com seu relaxamento precipitado levando à recente disparada nos
casos.
Mas
alguns mistérios permanecem sem uma explicação mais evidente. Por que,
apesar das previsões trágicas, a África aparentemente não enfrenta um
surto descontrolado e mortal de covid-19? Por que, mesmo estando
próximos ao epicentro original da pandemia na China, muitos países
asiáticos não observaram uma explosão inicial de casos? Por que, mesmo
ignorando ou não cumprindo adequadamente medidas básicas de prevenção,
como uso correto de máscaras e distanciamento social, os piores cenários
não se concretizaram em diversas localidades do Brasil? Em busca
de possíveis respostas para estas perguntas, alguns cientistas se
voltaram para dados populacionais e sanitários. Para além de
características demográficas como pirâmides etárias supostamente mais
favoráveis, com populações mais jovens, ou falhas nos registros, como
subnotificações e baixos índices de testagem, o cruzamento destes dados
revelou duas correlações surpreendentes em estudos preliminares
divulgados em meados de setembro.
No
primeiro deles, um grupo de pesquisadores do Instituto de Tecnologia de
Nova York liderado por Gonzalo H. Otazu mostrou que países de renda
média e alta onde a vacina contra a tuberculose com o Bacilo
Calmette-Guérin (BCG) ainda faz parte de políticas nacionais de
imunização em geral apresentam uma taxa de mortalidade menor pela doença
do que nações onde ela não é mais adotada como política de saúde
pública. Já no segundo, outro grupo encabeçado pelo neurocientista
brasileiro Miguel Nicolelis detectou uma coincidência geográfica entre
locais vítimas de surtos recentes de dengue tanto no Brasil quanto no
exterior com uma menor incidência, disseminação e mortes por covid-19.
Correlação e causa
Embora
sugestivos, os resultados destes estudos, ainda em preprint e sem
revisão por pares, não querem dizer que a vacinação com BCG ou uma
infecção prévia por dengue sirvam de proteção contra a covid-19. Em
ciência há um enorme abismo entre correlação e causalidade, como bem
demonstrou o ativista americano Bobby Henderson, em 2005, numa
comparação que se tornou notória. Então, numa carta aberta de
protesto ao Conselho Escolar do Kansas, que determinou o ensino do
chamado "design inteligente" —uma forma de criacionismo pseudocientífico
— lado a lado à Teoria da Evolução de Darwin no currículo educacional
do estado, Henderson defendeu que tais aulas deveriam incluir as visões
de sua recém-criada religião do Pastafarianismo. Segundo esta paródia
religiosa, o Universo foi criado pelo grande Monstro do Espaguete
Voador, que usa como vestes uma fantasia de pirata. Como prova de seu
poder, o ativista destacou um gráfico demonstrando que o aquecimento
global e o aumento no número de eventos climáticos extremos, como
furacões, desde o século 10 apresentam uma relação direta com a queda na
atividade da pirataria em alto mar a partir de então.
De lá para
cá, piadas do tipo se espalharam pela internet, com sites e até livros
inteiros dedicados a produzir e compilar correlações espúrias como o
consumo de margarina nos EUA e o aumento nas taxas de divórcio no estado
americano do Maine, ou os investimentos em ciência, tecnologia e
exploração espacial e os suicídios por enforcamento no país. Todos estes
exemplos que fazem parte de trabalho realizado pelo ex-estudante de
criminologia da Universidade de Harvard Tyler Vigen a partir do início
dos anos 2010, com o intuito justamente de destacar os perigos e a
facilidade de usar dados e estatísticas para confundir aparentes
relações com causas.
Geradoras de hipóteses
Isso
não quer dizer, no entanto, que toda correlação é falha. Assim como
acontece com as metanálises e revisões de literatura científica no
princípio conhecido pela sigla inglesa GIGO (Garbage In, Garbage Out,
literalmente "lixo entra, lixo sai", isto é, se os estudos de base são
ruins, a metanálise ou a revisão, por mais cuidadosas que sejam, também
serão ruins), sua qualidade depende da validade das informações e do
tratamento dado a elas, ou seja, não basta que os dados sejam
verdadeiros e confiáveis, sua análise e interpretação devem ser
criteriosas. Bem feitas, as correlações são poderosas geradoras de
hipóteses, a serem confirmadas por estudos subsequentes que busquem
seus mecanismos causais, e a História da ciência está cheia de
coincidências assim que se traduziram em grandes descobertas. Seguindo o
exemplo da sobreposição de mapas e territórios geográficos utilizada
para associar a vacina BCG e a incidência de dengue com a covid-19,
podemos citar o caso da teoria das placas tectônicas.
No início do
século 20, o meteorologista alemão Alfred Wegener chamou a atenção para
o fato de que os litorais dos grandes continentes da Terra se
encaixavam como num imenso quebra-cabeça, lançando a ideia de que
originalmente estavam unidos em uma imensa massa de terra, a qual
denominou Urkontinent ("continente primevo" em alemão) e se separaram
lentamente em um processo chamado "deriva continental". Sua proposta foi
inicialmente recebida com críticas e ceticismo, mas posteriormente
estudos de paleomagnetismo, geologia do leito marinho e a descoberta de
enormes cordilheiras submarinas nos mapas do relevo oceânico produzidos
por Marie Tharp e Bruce Heezen nos anos 1950 trouxeram mais sinais e
seus mecanismos causais, demonstrando que ele estava fundamentalmente
certo.
Da coincidência à evidência
Na
biologia e medicina, no entanto, a busca por evidências segue por um
caminho bem diferente. Dos estudos populacionais é preciso partir para a
verificação empírica via ensaios controlados. No caso da correlação
entre dengue e covid-19 revelada por Nicolelis e equipe, esta
investigação é mais complexa e difícil, se não impossível, de ser
realizada de forma ética diretamente - ninguém vai inocular
propositalmente pessoas com uma doença potencialmente fatal para ver se
ela protege de outra. Restam então os caminhos de aprofundar os
inquéritos epidemiológicos, fazer experimentos in vitro e in vivo em
laboratório à procura de possíveis mecanismos causais ou mesmo testar se
as relativamente recentes vacinas aprovadas para dengue também poderiam
fornecer algum tipo de proteção contra o Sars-CoV-2, por exemplo. Já
com relação à possibilidade de a vacina BCG —bem conhecida, segura e
tolerada — de algum modo proteger contra a covid-19, o caminho está
aberto para ensaios clínicos que sigam o chamado padrão ouro para este
tipo de investigação, isto é, controlados com placebo (em que um grupo
de participantes recebe a vacina e outro uma solução inócua), duplo
cegos (em que nem os participantes nem os pesquisadores sabem quem faz
parte de cada grupo ao longo do experimento) e randomizados (em que os
participantes são designados para cada grupo de forma aleatória e
homogênea).
Assim, vários grupos de cientistas ao redor do mundo
já seguem esta seara, com mais de duas dezenas de estudos relacionados à
utilização da BCG na prevenção da infecção ou agravamento da covid-19
registrados na base de dados americana de ensaios clínicos
ClinicalTrials.gov. E a estes se junta agora pesquisa coordenada por
Fernanda Mello, professora de Tisiologia e Pneumologia do Instituto de
Doenças do Tórax da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em
estudo lançado no início deste mês, Fernanda e equipe vão recrutar mil
profissionais de saúde que receberão a BCG ou um placebo para ver se os
efetivamente vacinados apresentam uma menor taxa de infecção ou
agravamento da covid-19. O ensaio, envolvendo o Hospital Universitário
Clementino Fraga Filho, da UFRJ, o Hospital Pedro Ernesto, da UERJ, e
Hospital Municipal Dr. Francisco Moran em Barueri, São Paulo, tem
previsão para durar um ano, mas a ideia é fazer avaliações preliminares
ao longo do caminho.
A literatura nos embasa na hipótese do
potencial efeito protetor da vacina BCG para a covid-19, visto sua
habilidade de estimular a imunidade inata, e com isso tornar o sistema
imune mais apto para desafios, como as infecções virais, Será um ensaio
clínico randomizado, cego, com a aplicação da vacina BCG ou de placebo
(solução salina). Vamos incluir mil participantes em todos os centros do
estudo, acompanhá-los ao longo de 12 meses com avaliações clínicas e
laboratoriais periódicas, e análises parciais ou interinas serão
conduzidas no decorrer do acompanhamento.
Desta forma, os demais grupos de pesquisadores pelo mundo deverão
revelar se a BCG de fato pode ajudar na batalha contra a pandemia de
covid-19 ou se tudo não passa de uma coincidência, como a falta de
piratas aquecer o planeta. Fonte: https://www.uol.com.br/vivabem
A disseminação da
covid-19 pelo mundo afetou de forma heterogênea e assíncrona diferentes
países e populações. Enquanto alguns locais viram o número de casos e
mortes explodir ainda no início da pandemia, com hospitais lotados e
cenas de caos nos sistemas de saúde e funerários, como Itália, Espanha
ou Nova York, outros demoraram mais para serem atingidos, como a Índia,
ou parecem terem sido poupados dos piores cenários, como a África em
geral. Certas nações permaneceram meses com altas taxas de contaminação e
óbitos, como o Brasil, enquanto outras experimentam surtos
relativamente tardios, como a Argentina, ou após meses de aparente
controle do novo coronavírus, como França e Reno ... - Veja mais em
https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/10/24/dengue-bcg-e-as-estranhas-correlacoes-da-covid-19.htm?cmpid=copiaecola
A disseminação da
covid-19 pelo mundo afetou de forma heterogênea e assíncrona diferentes
países e populações. Enquanto alguns locais viram o número de casos e
mortes explodir ainda no início da pandemia, com hospitais lotados e
cenas de caos nos sistemas de saúde e funerários, como Itália, Espanha
ou Nova York, outros demoraram mais para serem atingidos, como a Índia,
ou parecem terem sido poupados dos piores cenários, como a África em
geral. Certas nações permaneceram meses com altas taxas de contaminação e
óbitos, como o Brasil, enquanto outras experimentam surtos
relativamente tardios, como a Argentina, ou após meses de aparente
controle do novo coronavírus, como França e Reno ... - Veja mais em
https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/10/24/dengue-bcg-e-as-estranhas-correlacoes-da-covid-19.htm?cmpid=copiaecola
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